No tempo da delicadeza

 

Fazia ontem minha habitual ronda matinal pelas frivolidades do face quando tropecei num comentário que ficou ressoando na minha cabeça o resto do dia: “O cara que descreveu o brasileiro como cordial, simpático, alegre e extrovertido NUNCA esteve em Brasília”, protestava minha amiga – que é gaúcha, para piorar a situação.

De tudo o que as pessoas falam mal de Brasília (e a lista não é pequena), essa é a crítica que mais me dói. Por um motivo simples: infelizmente acho verdade.

Resistia a admitir isso, como militante aguerrida da minha cidade. Questionava: somos cíclicos, recebemos sistematicamente gente vinda de todo canto do Brasil e do mundo. Nossas turmas estão sempre em mutação, somos os reis em fazer amigos dos amigos dos amigos. Como podemos ser ao mesmo tempo agregadores e desagradáveis?

Sei lá se pela pressa de toda grande cidade, se pelo nosso modus operandi que nos isola em carros quase sempre mono-ocupados ou se é um sintoma da desagregação social que – de novo, infelizmente – é marca da cidade. O fato é que muitos de nós deixamos a simpatia e a cordialidade em algum lugar do caminho dos nossos 50 e poucos anos.

Nos únicos cinco que morei fora de Brasília vivi num lugar em que o hábito de se dar bom-dia é quase uma obsessão. Você entra em um elevador e dá bom dia, sai dele e dá bom-dia. Se entrar, sair e entrar de novo em uma mesma sala, e cruzar com as mesmas pessoas, capaz de ouvir bom-dia três vezes. E eu não estou exagerando.

Quando voltei, fiquei impressionada de ver que simplesmente não temos esse hábito tão simples. Nas lojas, o bom-dia atualmente cedeu a vez à pergunta sistemática: “quer CPF na nota?”. Nem sei se quero, mas dá para me dar “oi” antes? No elevador, na entrada dos prédios, nos banheiros públicos – tem gente que chega se assusta quando você cumprimenta de verdade, olhando direto para ela.

Na seção favorita da minha revista favorita – onde um filósofo responde a perguntas feitas por crianças – li uma vez um menininho de 5 anos que perguntava: “Por que temos que dizer toda vez ‘por favor’ ou ‘obrigado’ se já falamos várias outras vezes?”.

Da resposta fofa que o filósofo francês Pierre Pieu deu a ele, a melhor parte é quando explica: “Os humanos, crianças ou adultos, não são mecânicos, como um distribuidor automático de bebidas. Cada um de nós pensa e tem sentimentos, cada um de nós fala, e quando nos cumprimentamos, cada um de nós mostra que reconhece no outro um semelhante”.

Simples como um bom-dia.

Bora?
Repita comigo: Bom dia! Tudo bem? Boa tarde! Boa noite! Boa semana! Obrigada! Bom descanso! Bom almoço! E sério, agora, do fundo do coração: um bom dia pra você!

 

27 respostas em “No tempo da delicadeza

  1. Carol querida, concordo com você que a gente está cada dia menos “reconhecendo o outro como semelhante” – e isso é muito sério – mas sou obrigadíssima a discordar que isso seja próprio de Brasília. É de qualquer lugar. E olha que eu sou de fora dessa terra. Sou de um lugar cujos habitantes têm fama de serem frios e distantes…tenho uma certo medo de afirmações como essas porque elas são extremamente subjetivas e calcadas nas experiências de cada um – e as generalizações sempre são complicadas. Enfim, a Brasília que eu conheço – e de que gosto muito, reconheço -, em relação aos “bom dias”, “tudo bem?”, “boa semana” não é tão diferente dos outros lugares desse país. Pode ser em outras coisas, também como em qualquer lugar.

    Beijos.

    • Claro que sim! É como disse: um problema de toda grande cidade. Mas uma cidade tão aberta, tão curiosa em relação ao outro, tão poética quanto Brasília não deveria cair nessa pegadinha – de estarmos tão corridos que não nos notamos. Esse post não é uma crítica raivosa – é um lembrete pra todos nós. Aqui como em qualquer lugar, cultivar a delicadeza não custa nada e faz muito bem.

  2. Ai, eu nao sei o que dizer muito… Eu sou que me você, defensor fervoroso da cidade. Eu sei que um dos meus grandes defeitos (e de muita gente, acho) é generalizar demais, rotular. E fico enlouquecido quando rotulam coisas (boas e ruins) do tipo “na Australia, as mulheres dao em cima de voce” ou “em Goiania e em Minas as mulheres sao proativas” ou “no Rio so tem mala”, “em Sao Paulo só tem gente estressada”, “nordestinos são sempre simpáticos” ou “em Brasilia ninguem faz amizade”. Esta ultima na linha do que voce disse, de nao darem bom dia nem nada.

    Enfim, acho que a generalização é falha. Eu posso falar só do meu mundo, do meu ambiente de trabalho, do meu ciclo de amigos, dos ambientes que frequento. E neles nao vejo, sinceramente, nada disso (de nao dar bom dia, nem nada).

    Entendo porém, que, quando se refere a uma loja um estabelecimento, Brasilia parece estar na Idade da Pedra no que diz respeito à prestação de serviços. E nao falo apenas de competencia tecnica, mas de tratamento, informação e etiqueta. Acho que isso as vezes explica porque muita gente te trata de forma chucra quando voce vai numa casa lotérica, numa padaria ou num restaurante. Falta treinamento, falta informação, falta capacitação.

    Mas, dito tudo isso, ainda me questiono de novo: desde quando “educação” é adquirida com treinamento, ne?

    Bom dia, Carolina!!! 🙂

    Beijiocas

    • Bom dia, Felipe! 🙂 Não generalizemos, pois. Nem descuidemos dos pequenos cuidados. A cidade das faixas de pedestre bem que podia virar também a cidade do calor humano – esse, sim, generalizado.

  3. Não acho que a falta de polidez seja um privilégio brasiliense. No geral, brasileiro é meio grosso nessa polidez convencional de dar bom dia, boa tarde, boa noite. Ainda mais no setor de serviços. Estou falando da polidez convencional. Digo isso porque eu tb morei num lugar como esse que vc descreveu. Era bom dia a torto e a direito, e se vc cometesse o erro imperdoável de se esquecer de cumprimentar, nego já vinha com quatro pedras na mão. Pra mim, essa urbanidade não quer dizer nada. É a tal falsa polidez. Claro que ela ajuda, serve, agrada, mas se é pra dizer bom dia com cara feia, não quero, muito obrigada! Brasileiro pode ser grosso nas aparências, muito pela falta de educação, mas é muito mais polido no coração (tá, é piegas demais!). É um povo mais solidário que consegue ter mais empatia. E isso, pra mim, conta bem mais que um bom dia automático e sem sinceridade.
    Belo blog! Adoro Bsb!

    • Hahaha, polido no coração foi fofo. 🙂 Bora botar a polidez do coração para falar então, né, Claudia?! Todo mundo junto: we are the worldddddd… Solidariedade e companheirismo com o próximo já são coisas bem mais difíceis de pedir pros meus queridos leitores. Eu tô pedindo só um bom-dia. Se for com um sorriso então… 😉

  4. sabe aquela coisa, não importa a cidade, o que vale é a MINHA ação? Na boa, eu tenho o hábito do Bom dia, então que o mundo ouça meu ” bom dia” , uma hora o rabugento cansa de ignorá-lo e passa a responder de volta 😉

  5. Adorei o texto, Carolina Nogueira, como sempre, aliás… E meu comentário tem muito a ver com essa tal generalização. Que eu acho uma grande bobagem, por sinal.
    O fato é que na manhã de ontem calhou de eu ter contato com três pessoas – em diferentes situações, de diferentes níveis de renda e, provavelmente, de escolaridade – e as três foram… bem, nem dá pra dizer que foram estúpidas, grossas ou coisa que valha. Foram desagradáveis, desse jeito que você expressou tão bem. Com aquele olhar do tipo: sim, agora que você me obriga a te ver, eu faço que não te vejo. No segundo momento, com a minha insistência costumeira, elas me lançaram uma expressão entre a raiva e o ódio: sim, e o que você está fazendo aqui que me obriga a olhar pra você e mais, responder algo pra você! E ainda fazer alguma coisa por você. No caso, as pessoas eram um atendente da Polícia Federal, um motorista e um cobrador de ônibus.
    Em relação aos gaúchos, dedões destroncados por convicção, muito mais do que por falta de ferramentas, como falou a Claudia, acho que muitos – pelo menos, nas grandes cidades – já adotaram a tal falsa polidez. O bom dia, por assim dizer. Ninguém mais se assusta com isso, é o que quero dizer. Com licença também é usado, pelo menos em Porto Alegre. Mas sabe lá o que rola nos rincões…
    Mas vocês já deram bom dia – esse, sorrindo, com olhar direto e tudo – pra um motorista de ônibus em Brasília? Eu faço isso todos os dias e somente no último ano, por fazer isso com os mesmos motoristas, da mesma linha, eu começo a receber respostas! Tímidas, é verdade, como se eles estivessem com receio de responder. Mas o bom dia/boa tarde retorna! Até então, nos sete anos anteriores, eu recebi: olhares estranhos, olhares de surpresa, nada ou resmungos.
    Eu não sei se chega a ser uma teoria. Não tenho tal pretensão. Mas comecei a reparar que, fora do ambiente de trabalho, muitas pessoas que desempenham trabalhos manuais e/ou braçais – a turma da limpeza, da portaria, etc – se assustam quando alguém que elas acham que não faz a mesma coisa cumprimenta. Não acho que elas sejam grossas, só não sabem muito bem como responder.
    Será que é porque os ricos, os bem ricos, os poderosos de plantão nem olham pra elas? Sabe o tal papo da invisibilidade do lixeiro? Já li isso em algum lugar… mas esqueci a fonte!
    Enfim. Só fiquei chocada ontem com a coincidência de tantas pessoas, em menos de uma hora, terem o mesmo tipo de reação a simples presença de outra criatura.
    Desabafo mesmo, sacou?
    Mas não fique triste ou encafifada com meu comentário! Tem muitos brasilienses legais como tu por aí! Eu só preciso encontrá-los mais vezes!
    Grande beijo.

    • Ei, Cris! Tem dias assim mesmo e, acredite, em qualquer lugar do planeta. Tem várias coisas que passam pela minha cabeça: a exclusão social, a dificuldade de vida dessas pessoas que moram longe, trabalham muito e ganham pouco, a brutalidade a que muitas pessoas estão expostas… O jeito de virar esse jogo é continuar distribuindo nossas doses diárias de gentileza. A gente pode até não entender e nem ver como, mas eu acredito que um dia a gente vira esse jogo. A contar pela repercussão desse post, não falta gente disposta a engrossar o coro da simpatia. Beijos!

  6. Carol, concordo com sua análise, mas gostaria de ressaltar que convivi com diversas pessoas de fora da cidade com posturas críticas e duras em relação ao comportamento do brasiliense, mas que não viviam a cidade. Ficavam presas na Esplanada durante a semana e no final de semana voltavam para suas cidades, reclamando justamente de Brasília que estava oferecendo um trabalho e uma oportunidade de vida melhor. eu gosto de dizer bom dia, conversar, comentar nas filas… e tento desarmar essas pessoas que não sabem o que é convivência com sorriso e educação. Eu não desisto delas e não aceito que sejamos tão frios com nossos semelhantes. O melhor jeito de mudar é a prática diária. Quem sabe essas pessoas não recebam uma saudação justamente num dia ruim em que achamos que fomos esquecidos por Deus? As relações humanas operam milagres e eu acredito nisso. Bjks!

    • Eu também acredito nisso, Patrícia! E também não gosto de quem não vive na cidade e reclama dela. Mas não era o caso da minha amiga aí de cima que fez esse comentário… A guerrilha da delicadeza é a solução! 🙂

  7. Já deparei-me com o que relatou a autora, no tocante aos comentários conforme mencionou encontrar num face. Concordo com a Mônica Silvedstrin, quando fala da dificuldade que alguns têm em reconhecer no outro um semelhante. Também concordo com o Felipe quando fala do aspecto negativo das generalizações, e do implemento ao tema quando Carol associou o lado bom das faixas de pedestres com o calor humano. Revelo que também ri muito do “coração polido” dito por Cláudia. E assustei-me com a constatação da Cris (principalmente por se tratar de agentes prestadores de serviço, que tem por missão o trato com o público). Mas fiquei feliz com todos os relatos, pois traz uma oportunidade de reflexão. E é bom encontrar uma a palavra de perseverança da Patrícia, quando diz ser a prática diária o melhor meio para cuidar do que mencionou Mônica Silvedstrin.
    Um “bom dia” dito, mesmo sem se esperar retorno, pinga pingos de humanidade no petrificado coração humano-urbano, no devido tempo da delicadeza.

  8. Acho que a falta de hábito de cumprimentar-mos uns aos outros vem diminuindo paulatinamente. O ritmo acelerado que estamos vivendo não agrega; não havendo tempo para si próprio, imaginem para o próximo! Moro numa quadra bem antiga de Brasilia que é a 305 sul e os habitantes (na sua maioria com a idade bem avançada) não dispensam uma oportunidade de interação. Brasília é uma jovem senhora com seus meros 52 anos e acho louvável ler um post sobre hábitos que desejamos ter. Bora lá praticar. Uma ótima tarde a todos!

  9. Achei seu texto perfeito, Carol. E, a julgar pelo número de comentários, o tema mobiliza bastante gente. E eu que achava que estava sozinha nessa… Boa noite a todos!
    (já tinha elogiado o blog antes, mas não quero perder a oportunidade de elogiar de novo. Que bom que vocês existem :))

  10. Carol, adorei o texto (e o blog! Delícia ler suas reflexões) e também engrosso a turma do bom dia! Deixo uma frase do Gandhi para pensarmos: “Você deve ser a mudança que deseja ver no mundo”. Beijão!

  11. Pingback: Gentileza de presente | quadrado

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